Terapia de casal: Parte I

Num casal, existem três elementos: o eu, o tu e o nós (Caillé, 1991). Existem duas pessoas, cada uma com a sua história de vida, os seus sonhos e projectos, as suas alegrias e os seus fracassos, os seus medos e fantasmas, a sua forma própria de olhar para o mundo, e uma entidade relacional, também com uma história e uma identidade própria. Em consonância com esta ideia, existirá então um espaço próprio para estas três entidades: um espaço de diferenciação de cada uma das pessoas – do eu e do tu – e um espaço de comunhão – do nós – que resulta da intersecção dos outros dois.

A conjugação destes três elementos e dos respectivos espaços nem sempre é fácil. Num casal existem, por vezes, perspectivas diferentes entre as duas pessoas sobre os espaços que a diferenciação e a comunhão devem ocupar. Isto acontece, por exemplo, quando uma das pessoas julga que o nós deverá ocupar muito espaço e exigir naturalmente disponibilidade e energia de cada um, e a outra pessoa imagina que deve existir mais espaço individual e menos de casal. Nestes casos, existe uma dificuldade na conjugação das duas perspectivas sobre o casal. É a diferença de perspectivas, e não o facto de haver uma mais válida do que a outra, que cria o conflito.

As perspectivas ou modelos que criamos sobre as relações dependem de muitos factores: da sociedade em que estamos inseridos, que dita quais as regras de funcionamento numa relação (um relacionamento com sucesso no mundo ocidental e no mundo oriental terá, com alguma certeza, contornos diferentes); dos modelos que tomamos como referência de sucesso – pais, avós, familiares, amigos – que nos levam a tender a perspectivar as relações da mesma forma; dos modelos que tomamos como referência de insucesso – pais, avós, familiares, amigos – e que nos fazem ter medo de repetir outras histórias e nos levam a comportar-nos de forma inversa.

Estes modelos de relação são muitas vezes inconscientes, e consistem em crenças que vamos construindo sobre como devem ser as relações para que tenham sucesso, funcionando como um guião de actuação. Como este guião é, na maior parte das vezes, inconsciente, o que sentimos, os comportamentos que adoptamos e a forma como reagimos aos comportamentos do outro também são, muitas vezes, automáticos. Ou seja, não temos consciência de que sentimos e agimos com base nesses modelos. Mais ainda, temos tendência a confirmar os nossos modelos, através do mecanismo de atenção selectiva, o que quer dizer que nos focamos nos sinais, internos e externos, que nos dizem que o nosso modelo está certo. E porquê?

Todos nós precisamos de crenças sobre as quais assentamos o nosso comportamento. Por exemplo, acreditamos que num mundo justo não devemos roubar, o que faz com que não roubemos. Estas crenças são-nos essenciais, porque são elas que nos permitem explicarmos, a nós e aos outros, o nosso comportamento, uma necessidade presente em todos os seres humanos e que parece estar relacionada com a questão da confiança: confiamos mais em quem sabe explicar melhor o seu comportamento, porque poderemos prever com maior confiança qual o comportamento que irá adoptar em circunstâncias semelhantes.

Do mesmo modo, acreditamos que para sermos felizes num relacionamento deve haver respeito, simpatia, amor, paixão, cordialidade, que devemos reservar mais ou menos tempo para o casal, mais ou menos tempo para cada uma das pessoas, devemos dar-nos com amigos ou não, sermos mais ou menos fechados, etc. E, uma crença que creio fundamental, acreditamos que é mais ou menos fácil conjugarmos quem somos, a nossa individualidade, com a criação do nós.

Construímos então teorias: sobre nós, sobre o outro e sobre as relações. Tendo como base algumas crenças, tendemos a comportar-nos de acordo com estas, e tendemos também a confirmá-las e reconfirmá-las. Por exemplo, se acredito que o outro gosta de mim, tenderei a procurar sinais que mo confirmem – o meu companheiro diz-me muitas vezes que gosta de mim, está alegre quando está comigo, envia-me mensagens carinhosas a meio do dia – e a desvalorizar sinais do contrário – não agiu como de costume, anda mal disposto há muito tempo, não faz o que lhe peço o que quer dizer que não me ouve.

Sendo incontornável termos crenças, não é incontornável que elas se mantenham as mesmas a vida inteira, e sobretudo que não as possamos flexibilizar. Ao longo do tempo os nossos modelos de actuação tornam-se rígidos, como se fossemos engrossando as paredes da nossa sala e se tornasse cada vez mais difícil comunicar entre compartimentos.

Num casal, os modelos individuais podem funcionar em determinado momento da vida, sendo fácil a conjugação de perspectivas, e não funcionar noutras, sendo necessária alguma mudança ou flexibilização. As diferentes etapas do ciclo de vida do casal, o crescimento individual, os acontecimentos por que vão passando, são elementos que vão obrigando, naturalmente, cada uma das pessoas a rever os seus modelos e o casal a mudar o seu funcionamento. Por exemplo, é provável que a conjugação dos espaços individuais numa fase inicial de paixão não seja semelhante à que acontece quando nasce um filho. Como conjugar, então, a influência de tudo isto na forma como cada uma das pessoas se vai construindo e reconstruindo, na forma como olha para o mundo e para a relação, mantendo um relacionamento satisfatório?

Nestes momentos de alguma crise, torna-se essencial transformá-la numa oportunidade de crescimento a dois. Muitos dos casais que acompanho em terapia e que ultrapassam períodos mais difíceis relatam como muito importante a sensação do esforço ter valido a pena, no sentido de fortalecimento da relação. Na parte II deste texto abordarei alguns dos aspectos que considero relevantes na gestão conjugal destes períodos.

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