Que há-de ser de nós

Que há-de ser do mais longo beijo
que nos fez trocar de morada
dissipar-se-á como tudo em nada?

(Sérgio Godinho)

 

O tempo passa, e eu não paro de me surpreender. Não há um só dia em que atenda um casal que não venha para casa pensativa. Como terapeuta, estou cada vez mais atenta às minhas próprias perguntas sobre as pessoas que atendo, porque julgo que são as elas, e não as afirmações, que mais me dizem sobre os casais e que mais me apontam soluções. Noto então que, à medida que o tempo passa, as minhas perguntas vão mudando. Vasculho os meus papéis de quando comecei a fazer terapia de casal:

- como é que comunicam? Que forma assume os conflitos neste casal?

- têm papéis de simetria, de complementaridade, ou alternam?

- por que razão surgiu uma terceira pessoa?

- qual é o problema principal deste casal? Quais são os temas que me trazem?

- Como funcionam as relações de poder neste casal?

E num relance vejo como, ao longo dos anos, os casais me foram transformando na minha forma de olhar para eles e para o que os traz à terapia. O que me terá levado a mudar a forma como olho para os casais? O que me ensinaram eles?

Os temas que levam um casal à terapia podem ser vários, sendo os mais comuns: discussões frequentes; perda de confiança no outro; afastamento emocional (“já não falamos”); infidelidade de um dos elementos; falta de projectos comuns; sentimentos de incompreensão da parte do outro (“parece que já não falamos a mesma língua”); falta de desejo, perda de intimidade; críticas constantes.

Se é verdade que os temas que os casais nos trazem são importantes, o tipo de problema não parece influenciar o sucesso da terapia. Talvez por essa razão as minhas perguntas tenham mudado. Então quais são os preditores do sucesso num casal? É minha experiência que, tão ou mais importantes para que os casais voltem a atingir o bem-estar são as perguntas que me faço sobre o outro lado da balança:

- Quem são estas duas pessoas? Que sonhos têm? O que as realiza? O que é que as faz vibrar? O que as preenche?

- O que é que cada uma destas pessoas quer da vida? E de uma relação amorosa?

- O que é que cada um deles é que não está a conseguir ser, neste momento, nesta relação?

- Como gostavam que fosse esta relação?

- O que uniu este casal?

- Que manifestações de afecto existiram em sessão?

- Interessam-se pelos projectos e bem-estar um do outro?

- Querem-se? Desejam-se?

Muitos terapeutas de casal resumem a terapia aos processos de “aprender a comunicar” e “aprender a gerir conflitos”, focando-se nos temas que os casais dizem ser a sua principal fonte de discussões. No entanto, se é certo que a aprendizagem de um casal sobre a gestão dos conflitos é importante, parecem existir aspectos mais essenciais a explorar.

Alguns estudos indicam que a maior parte dos conflitos no casal são irresolúveis (Gottman, 2001), porque têm como subjacentes diferenças fundamentais, entre os dois elementos, na perspectiva, personalidade, forma de estar na vida. Muitos casais vivem anos e anos a tentar transformar o outro nestes aspectos essenciais (muitas vezes sem disso terem consciência), o que é bastante visível no tipo de discurso presente na maioria dos casais que nos chegam:

- Então qual ou quais são, na vossa perspectiva, os problemas deste casal?

- O problema é que ela é demasiado exigente.

- O problema é que ele não tem iniciativa.

Os temas podem ser a divisão das tarefas de casa, a decisão sobre as férias, a gestão do dinheiro, o cuidado dos filhos. Feliz ou infelizmente, num casal existe um sem fim de conteúdos sobre os quais discutir. E este ciclo de acusações mútuas pode multiplicar-se ao longo do tempo, com a constatação frequente, de parte a parte, de que nada mudou.

Os casais satisfeitos com a sua relação e aqueles que têm sucesso terapêutico também têm discussões irresolúveis: também gritam, também amuam, também se entristecem, também se zangam. Mas de algum modo parecem saber, no seu íntimo, que no essencial o outro não se alterará apenas porque o desejam. Provavelmente, é esta aceitação da imperfeição do outro que permite que a forma dos conflitos destes casais esteja menos carregada de negatividade e de ataques directos. E, talvez ainda mais importante, há um maior movimento de abertura e de amor em relação ao outro que lhes permite desfrutar mais dos momentos que passam juntos, admirar mais o seu parceiro e por isso desejá-lo mais, lembrar-se do que os fez juntar-se com um sorriso, receber de braços abertos o que o outro tem para lhes dar. No fundo, cada um deles consegue olhar para si e entender em que é que contribui para o problema, qual a sua responsabilidade, e por isso ganham a liberdade de poder escolher fazer diferente.

Não sei que perguntas me farei sobre os casais que vierem ao meu encontro daqui a cinco anos, mas elas serão seguramente diferentes das que me faço hoje em dia. Ontem mesmo, numa primeira sessão, olhei para eles e fiz-me duas perguntas:

- olham um para o outro enquanto falam?

- riem-se em conjunto?

Talvez no fundo me perguntasse se se amam. Agradeço-lhes a resposta. Que o tempo passa, e eu nunca paro de me surpreender.

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