A questão das dinâmicas de poder nos casais não é nova nem o assunto foi pouco explorado por teóricos. É por isso com espanto que, ao longo destes anos de prática clínica e de trabalho com casais, constato que este é um dos principais temas que os traz à terapia.
Não deixa de ser curioso que numa época em que, talvez mais do que nunca, se advoga a igualdade, o respeito, o amor, se assista a rebuscadas formas de violência que pouco têm que ver com estes valores.
Ou talvez não seja tão curioso assim.
Estes “novos” ideais influenciam, directa ou indirectamente e tantas vezes sem nos darmos conta, as nossas crenças sobre quem devemos ser, quem deve ser o outro e que tipo de relação é “boa para mim”, “verdadeira”, “ideal”. Não haverá como escapar da influência social no nosso crescimento, e a solução para não lhe ficarmos escravos será tomarmos consciência dessa mesma influência.
No entanto, o problema não é, a maior parte das vezes, tão linear quanto a simples desconstrução da tirania do dever e a subsequente escolha consciente do que quero para mim. O problema parece-me ser, quando observo casais, este aparente conflito entre um ideal relacional e o que sentimos no nosso mais íntimo.
Se houve aspecto social que tantas transformações sofreu num curto espaço de tempo, foi a forma como nos relacionamos com o nosso parceiro, companheiro, marido, namorado, amigo colorido, e uma série de outros nomes, sendo esta profusão de definições bem espelho disso. Rapidamente se criaram novos ideais de relação baseados no amor incondicional, no respeito mútuo, na aceitação do outro. No entanto, a aparente distância entre estes ideais e os nossos lados emocional e instintivo parece criar um fosso difícil de ultrapassar, criando mensagens contraditórias dentro de cada um nós, que por sua vez se reflectem em actos contraditórios. E é na contradição que me parece residir, actualmente, a grande violência.
Olhemos para a seguinte frase:
- Tens de ser livre para eu gostar de ti.
Estamos a afirmar que o outro deve, à luz deste novo conceito de relação, ser livre de nós, deve poder ser quem é. No entanto afirmamo-lo através de uma imposição, que é uma forma de domínio e de afirmação de poder sobre o outro. Se por um lado eu quero que o outro corresponda a este ideal que tenho sobre ele, por outro lado eu não sinto isso mas o seu contrário, ou não teria necessidade de lhe impor algo tão essencial. E note-se ainda uma outra contradição: eu, apologista do amor em liberdade, condiciono numa só frase o meu amor pelo outro, dizendo-lhe entrelinhas que na realidade não gosto dele, não o amo.
Existem necessidades emocionais que, por julgarmos incompatíveis com estes novos ideais, vão sendo silenciadas e ludibriadas, na esperança de que simplesmente desapareçam. O que pensarei sobre mim mesmo ao constatar que, na verdade, existe um desejo de domínio do outro, ou um grande medo de ser dominado? Ou pior, o que pensarei sobre mim ao constatar que por vezes fantasio ser dominado pelo outro?
No entanto, talvez a incompatibilidade seja, também ela, uma ilusão.
Em todos os casais existem momentos em que as dificuldades e receios de cada um surgem mais à flor da pele. Há momentos em que os casais discutem mais, ou estão mais afastados emocionalmente, ou têm dificuldade em gerir a proximidade e a distância. As dinâmicas que estão relacionadas com o poder surgem talvez hoje mais do que nunca, dado que o ideal de igualdade de género está, felizmente, afirmado na nossa sociedade. No entanto, esse ideal pode não ter correspondência emocional no mais profundo de nós. Em determinados momentos da história de um casal surgem medos: de perda, de ser rejeitado ou rejeitar, de ser dominado ou dominar, de ser considerado inferior ou superior. Estes medos fazem parte de nós, da nossa história, do nosso crescimento enquanto seres relacionais, e o seu surgimento pode ser aproveitado pelo casal para crescer em conjunto, em vez de ser considerado algo mau, feio ou vergonhoso.
Nas dinâmicas de violência conjugal existem, grande parte das vezes, inseguranças relacionadas com o medo de ser dominado, subjugado ou inferiorizado. A expressão desta insegurança pode ser ameaçadora para o agressor, uma vez que não vai ao encontro do que este julga ser alguém de “valor”. Esta insegurança, por não ser expressa, é projectada no outro sob a forma de agressão, mais ou menos explícita.
A vítima da agressão tem normalmente dificuldade em impor os seus limites, sendo essa a sua grande vulnerabilidade. Normalmente o sentimento é de incompreensão e incredulidade perante o facto de alguém que lhe diz que o ama também o agredir. Nas formas mais subtis de violência, e por isso muitas vezes mais intensas, esta contradição está bem patente mas pode ser difícil ganhar consciência sobre ela e quebrá-la, colocando a vítima num beco sem saída:
- se não te impuseres não te respeito; se te impuseres serás alvo da minha agressão.
Na minha prática clínica, já tive casos de sucesso e de insucesso em que a temática da violência era predominante. Ao reflectir sobre os dois tipos de caso, compreendi que em relação aos primeiros eram claros dois níveis de sucesso: na transformação das dinâmicas de poder; no amor que têm um pelo outro.
Em relação ao primeiro nível, tem-se tornado cada vez mais explícito para mim a necessidade de trabalhar os seguintes temas:
- Criar um espaço em que o agressor possa assumir a responsabilidade pelo acto cometido;
- Compreender quais as fragilidades do agressor que podem ter contribuído para o acto de violência e ajudá-lo a expressá-las;
- Retirar a culpa que muitas vezes recai sobre a própria vítima, o que se traduz num verdadeiro pedido de desculpas por parte do agressor;
- Ajudar a vítima a compreender que a culpa da agressão não é sua, sendo apenas sua a responsabilidade de permanecer no ciclo de agressões;
- Ajudar a vítima a compreender quais as suas vulnerabilidades que fizeram com que permitisse a agressão.
Relativamente a esse outro nível que denomino de “amor”, relembro um caso de sucesso e da nossa última sessão, em que lhes perguntei o que é que achavam que tinha contribuído para estarem tão bem. Ele respondeu-me, emocionado:
- Eu amo-a. Foi isso que me permitiu mudar.
As relações amorosas constituem um campo que pode ser de profunda transformação interior. Permitem-nos entender os nossos medos e desejos mais profundos. No entanto, julgo que não é esta transformação que nos vai possibilitar chegar ao tão almejado “amor”. O amor não é atingido quando curamos as nossas antigas decepções e finalmente estamos “prontos” para receber o outro. Pelo contrário, é o amor que permite que cresçamos em conjunto, que nos dá espaço para nos transformarmos, amando-nos.
A tarefa, neste caso, é darmo-nos conta se o que nos liga ao outro são apenas os nossos medos e até o nosso desejo de mudar, ou se existe essa outra verdade, que na minha opinião tem a ver com algo bem mais simples, profundo e essencial. Tem a ver com o riso, com o brilho no olhar, com alegria. E isso nenhum terapeuta pode criar. Apenas ajudar a lembrar.