Encontros terapêuticos

Trabalho com pessoas, individualmente ou em família, há alguns anos. De tempos a tempos, sem perceber bem como ou porquê, começo a sentir uma necessidade mais ou menos urgente de rever o trabalho que fizemos em conjunto. Vou então reler os meus poucos apontamentos, que me ajudam somente a ter presentes as pessoas, os casais, as famílias. Mais do que as técnicas, as análises dos casos, que foram (que são) resultado do que sinto a cada momento com cada pessoa que comigo se cruza, e que são sem dúvida importantes, relembro-me de quem era, do que me marcou em cada encontro, das perguntas que lhes fiz e das que me fiz.

E talvez esta minha necessidade de revisão tenha que ver com mudanças que sinto irem acontecendo em mim, resultado, não tenho dúvidas, das histórias que se cruzam com a minha. De tempos a tempos, sem perceber bem como ou porquê, ganho uma nova forma, também enquanto terapeuta mas, essencialmente, como pessoa.

Desde que trabalho com pessoas (ou quem sabe desde sempre) que me apaixona a sua capacidade de transformação. Quando comecei a trabalhar, lembro-me bem da minha necessidade de ver resultados, de estabelecer números máximos de sessões, de ter uma abordagem rápida e centrada nas forças. Emocionava-me (e emociona-me) a famosa resiliência, deslumbrava-me a força de quem continuava a andar, centrado nos objectivos, por mais empecilhos pelo caminho. Admirava os sonhos, rejubilava com cada conquista. Amava-lhes o futuro. Tudo isto se mantém, e agradeço a todos os que comigo partilharam os seus sonhos. As questões que guiavam o meu trabalho focavam-se nos objectivos, nos sonhos, na esperança: o que quer ser esta pessoa? Como se visualiza no futuro? Como quer estar no final deste processo? Como será a nova dinâmica deste casal? Como podemos chegar lá?

No entanto, lembro-me também da exaustão que sentia perante os insucessos, as frustrações, a falta de esperança. A tristeza perante relações que se perdiam. Da minha tensão no caminho antes de qualquer final. Do medo de não ter tudo sob controlo. De não saber o que fazer com alguns casos. Do meu medo do silêncio, do vazio, da impossibilidade, do descontrolo. Da minha sensação de estarmos parados. Resumindo, do meu medo do caminho.

Releio os meus poucos, cada vez menos, apontamentos recentes. E o facto de ser menos o que tenho escrito não se deve a uma maior capacidade de memória, decorrente de um aumento das minhas funções cognitivas. É verdade que cada vez mais sinto que me lembro com maior acuidade de cada sessão, mas julgo que isso tem que ver com o que tenho vindo a aprender, paulatinamente, com os meus clientes: a estar com eles em cada momento da sua história. Não é fácil, para eles e para mim: exige uma entrega a que muitas vezes não estamos habituados, e que nos parece não se coadunar com a vida do dia-a-dia, que nos empurra para a frente (ou para trás, dependendo da perspectiva. E o que interessa é o empurrão). Hoje em dia, admiro-lhes a força que não é só do futuro, mas sobretudo a coragem de se me mostrarem, por momentos. Apesar das feridas, das vicissitudes, da desconfiança, da falta de esperança. Admiro-lhes a inteireza momentânea mesmo sem saberem como lhes vai ser e saber o futuro. Espanto-me perante a transformação silenciosa: o que se passou entre nós nestes minutos de silêncio?

Não quero com isto dizer que tenha deixado de gostar das suas conquistas e sucessos, mas tem mudado o que me emociona: a coragem de pararem e de estarem consigo, e comigo, perante a sua própria vulnerabilidade; a sua dádiva apesar do caminho sinuoso; a sua capacidade de se ligarem, verdadeira e profundamente, a eles e por isso aos outros; o facto de não terem de ter tudo sob controlo, inclusivamente a nossa sessão; a sua capacidade de continuarem, mas parando no presente.

As minhas questões mudaram, ou acrescentei novas. Quando entro numa sessão, tento olhar bem para quem ali está: para os seus olhos, o seu sorriso, a forma do seu corpo; a sua tristeza, a sua zanga, a sua alegria, o seu brilho; a forma como me olha, ou não me olha (não imaginamos, não imaginava, como parar para observar pode ser tão importante). E olho também para mim: como me sinto, como está o meu corpo, que pensamentos me surgem, que olhos são estes que observam. E as minhas questões essenciais, nesse momento, são diferentes das de outrora: como transformar este momento num verdadeiro encontro? O que nos inibe (aos dois, ou aos três, ou aos vários), de o fazermos? Como posso ajudá-lo a dar o que tem para me dar, e a receber-me? Como posso dar-lhe o que tenho para dar, e genuinamente receber tanto amor que ali está fechado em memórias, preso a mágoas, tristezas, rancores, vinganças, desejos, medos?

Há não muito tempo, numa sessão de terapia de casal, fui marcada por um momento que não esquecerei, quando lhes pedi para se olharem em silêncio, de mãos dadas. Não é curioso como algo tão simples é tão difícil? (se a si lhe parece realmente fácil, uma de duas possibilidades: ou é muito saudável ou…é melhor experimentar um dia!). Não sei o que se irá passar no futuro deste casal. Mas agradeço-lhes tudo o que me deram nesse momento de silêncio.

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