Caso Mário

Estudo de Caso Terapia INDIVIDUAL


Neste artigo é apresentado um caso de terapia individual – Mário.
Processo que teve a duração de 22 sessões.
O pedido inicial esteve relacionado com a relação de casal, tendo vindo na sequência de um processo de terapia de casal de Mário e da sua mulher, Vitória.
Neste caso, pretendemos ilustrar como é que se pode intervir de forma sistémica através de um processo individual. Deste modo, existe uma tentativa constante de relação entre o que é vivido internamente por Mário e os sistemas de que faz parte: casal, família nuclear, família de origem, contexto social e contexto terapêutico. São expostos os principais processos desenvolvidos ao longo do tempo de terapia e a sua relação com as mudanças verificadas.


 

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Mário

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Mario tem 35 anos. Nascido na Colômbia, veio para Portugal com 15 anos, com a sua mãe e as suas três irmãs (mais novas que Mario), após a separação dos seus pais. Aos 30 anos conheceu Vitória, também colombiana e mais velha 10 anos em relação a Mario, com que se casa passados três anos. Vitória tem um filho de 16 anos, António, fruto de uma anterior relação. Mario e Vitória têm uma filha, Bárbara, de 3 anos.

Único homem numa fratria de quatro, assumiu o papel de responsável e protector da família quando esta se mudou para Portugal (o pai de Mário permaneceu na Colômbia, pelo que Mário se tornou o único homem na família), apesar de na altura ser ainda adolescente. Refere várias vezes uma forte ligação com a família, que define como sendo muito unida – “somos como um clã”. Na altura da vinda para Portugal a mãe teve uma depressão, o que acentuou o seu papel de cuidador das irmãs.

Após terminar o seu curso universitário começou a trabalhar, tendo rapidamente tido algum sucesso profissional. Actualmente é comercial de sucesso numa grande empresa. A sua ambição, paixão e exigência foram características que provavelmente o terão ajudado a ter sucesso no seu trabalho.

Mário e Vitória fizeram um processo de terapia de casal de 10 sessões, tendo sido o pedido inicial relacionado com os conflitos entre os dois: Vitória queixava-se da grande exigência de Mário, enquanto este se queixava de algum afastamento emocional por parte de Vitória, não correspondendo às suas expectativas. Foi também trabalhada a relação de Mário com António, essencialmente na maior definição do papel do primeiro em relação ao enteado.

Após terminar o processo de terapia de casal, Mário fez um pedido de terapia individual,

exprimindo que gostava de se conhecer e de entender melhor de que forma a sua história condicionava o seu bem-estar e o seu relacionamento com os outros, sobretudo com Vitória.
Refere a sua dificuldade em gerir expectativas na sua relação com Vitória e com os outros de uma forma geral, e também as suas dificuldades na intimidade com Vitória: Mário sente que tem uma maior necessidade de proximidade física/sexual, que Vitória entende como exigência e pressão.
Além disso, continua a sentir dificuldades relacionais com a mulher, que lhe causam angústia e frustração, tendo a sensação de que Vitória não gosta tanto dele como ele dela.



 

  

 

Formulação do caso

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O ciclo de vida familiar e o surgimento dos sintomas

 

Actualmente, Mário encontra-se numa fase do ciclo de vida familiar que pode propiciar o aparecimento de conflito e de mudança. Bárbara, agora com três anos, começa progressivamente a ganhar autonomia em relação aos pais. Quando um filho nasce, o casal reajusta-se, e os papéis predominantes são de pai e de mãe, havendo muitas vezes pouco espaço para o casal. À medida que os filhos vão crescendo, começa a surgir algum espaço para o sistema casal. No entanto, após um período de reorganização familiar, é natural que o sistema casal também sofra alterações, havendo uma redefinição dos papéis de um em relação ao outro. Além disso este é um momento em que parece haver, por um lado, uma necessidade de afirmação individual por parte de cada um dos elementos do casal, e por outro uma reafirmação da identidade do casal, e estas duas necessidades parecem, por vezes, ser incompatíveis. Estes dados vão ao encontro do que nos propõe G. Ausloos, que define o sintoma como “o resultado de uma incompatibilidade entre as finalidades do indivíduo e as finalidades familiares no momento de emergência do sintoma (Ausloos, 1981, citado por Ausloos, 1996, p.130). Apesar de Bárbara continuar a ser dependente, não é tão exigente, o que permite aos pais voltarem a centrar-se um pouco em si e na sua relação. Deste modo, este período de natural crise poderá ter contribuído para o aparecimento de algumas dificuldades no casal e para uma reflexão individual de Mário sobre o seu papel no seu casamento.

 

A história de vida de Mário e as dificuldades actuais

 

Herdeiro de uma família de lutadores – “o meu avô ergueu tudo do nada” – Mário aprendeu a nunca desistir. Os avós maternos eram pobres e ambiciosos, e os avós paternos tinham dinheiro e eram trabalhadores – “o meu avô era muito trabalhador e foi muito reconhecido mas morreu quando conseguiu criar riqueza. Foi uma pessoa que se sacrificou, que caiu várias vezes mas nunca desistiu”.

Mário define a sua família como ambiciosa, perseverante, com garra, orgulhosa de si, e olha para si e para uma das irmãs como os elementos que a tentam fazer prosperar e que preservam estas características. A união da família tem como uma das funções principais a protecção – “se nos uníssemos podíamos proteger-nos”; “funcionamos como um clã”. Esta protecção funcionará a vários níveis, nomeadamente emocional e também económico. O sucesso profissional e o dinheiro parecem estar relacionados, nesta família, a esta função de protecção.

Trata-se portanto de uma família unida, forte, e é também forte o desejo e a necessidade de Mário de lhe pertencer. Esta pertença permite-lhe sentir-se protegido. Mário refere que desde sempre teve muita necessidade de ser reconhecido pela sua família, expressando desta forma a sua necessidade de pertença ao grupo.

Hoje em dia continua a existir, da parte de Mário, uma grande necessidade de fazer parte do grupo “família” e uma grande necessidade de fusão com a sua mulher, como se a sua identidade dependesse desta pertença. O equilíbrio entre a pertença e a afirmação individual é um dos processos de crescimento: precisamos de nos sentirmos parte de algo maior, de nos sentirmos protegidos e amados pelos outros, e simultaneamente de sentirmos que somos diferentes das pessoas do nosso grupo de pertença, que somos especiais, com características especiais. A grande necessidade de se sentir parte do grupo, decorrente de uma definição muito intensa da sua família, pode estar relacionada, em Mário, com a sua dificuldade no estabelecimento de limites entre si e os outros, havendo também alguma confusão entre amor e limites individuais: a minha forma de dar e receber amor é através da pertença total, inibindo o processo de crescimento individual – se eu gostar do outro tenho de corresponder-lhe em tudo ao que precisa, e o contrário também se verifica. Esta necessidade de pertença também pode estar relacionada com as dificuldades que sente com o António: Mário queixa-se muitas vezes de não ter um papel definido em relação ao enteado (“não sei o que devo fazer ou dizer”) o que poderá tornar-se dificilmente conciliável, para Mário, com a ideia de família unida.

Aos 15 anos, após a separação dos pais, vem da Colômbia para Portugal com a mãe e as irmãs. Nessa altura sente-se responsável pela família (único homem), mais ainda quando a mãe deprimiu. Neste momento da sua vida Mário poderá ter-se sentido hiper-responsabilizado pelos outros significativos, o que terá aumentado a sua necessidade de controlo do exterior – tenho de entender o que se passa, do que os outros precisam, para poder cuidar das suas necessidades. Isto pode tê-lo levado a descentrar-se um pouco de si, inibindo-o de atender às suas necessidades individuais. Além disso, Mário pode ter entendido que num momento de crise como este, seria mais provável receber o cuidado e a protecção de que precisava se correspondesse às expectativas familiares de protector, da mãe e das irmãs.

Assim, numa altura da adolescência em que os jovens assumem um papel centrífugo, de afirmação pessoal, da sua individualidade, as condições de vida de Mário, bem como a sua história familiar e as características da sua família terão contribuído para que Mário assumisse um papel de adulto, havendo uma parentificação momentânea: “Faltava-me um timoneiro, alguém que fosse firme e coerente”. Isto pode ter criado dificuldades na sua definição enquanto indivíduo – a necessidade de pertença ao grupo (de frisar que uma das palavras importantes na definição da sua família foi clã) foi maior do que a necessidade de afirmação pessoal. Além disso, a responsabilização que sente pela família fá-lo não entender os limites entre o grupo e ele – eu sou o meu grupo de pertença. Também aqui é de realçar as características desta família: Mário utiliza as palavras clã e protecção como definidoras desta família.



 

  

 

PROCESSO TERAPÊUTICO

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À medida que o processo foi evoluindo, eu e Mário fomos construindo algumas hipóteses sobre a ligação entre a sua história e o que sente actualmente. Ao longo do tempo, os seus pedidos e objectivos terapêuticos foram sendo redefinidos, passando a objectivos de mudança interna, que naturalmente se foram reflectindo na sua relação com os outros.

 
Assim, de uma forma geral, foram sendo identificadas, no decurso da terapia, as seguintes dificuldades:
 


• Dificuldades no estabelecimento de limites entre si e os outros
• Necessidade de controlo do exterior, com consequente ansiedade e frustração quando repara que nem tudo é controlável; dificuldade em lidar com o que não depende de si
• Necessidade de fusão na sua relação conjugal, com limites pouco claros entre os dois, havendo algum conflito entre a necessidade de dar e de receber amor e a individualidade
• Auto-imagem pouco definida
• Grande necessidade de reconhecimento e de validação pelos outros
• Hiper-responsabilização, auto-exigência
• Alguma dificuldade na descodificação das suas emoções, do que realmente precisa
• Medo da perda, que reflecte uma insegurança em relação a si mesmo: quem serei sem os outros?


O processo terapêutico durou 22 sessões. O grande objectivo durante todo o processo foi de reconstrução ou mudança na percepção de Mário sobre si mesmo: quem sou eu? Quem sou eu na minha relação com os outros? Isto permitirá a Mário, no final da terapia, conciliar a sua necessidade de afirmação com a sua necessidade de pertença, ao entender que o conflito entre as duas estará relacionado com a sua percepção da sua história, não constituindo uma necessária oposição.

 

Numa primeira fase, o trabalho entre mim e o Mário foi de desconstrução/desestruturação. Durante esta fase, Mário foi-me falando sobre algumas memórias que considera importantes, e foi simultaneamente redefinindo os seus problemas e objectivos à luz do que ia entendendo sobre si. Através da exploração destas memórias, Mário pôde ir entendendo:

 


• Como é que a sua história condiciona o que sente hoje em dia;
• Quais são os seus maiores medos, e quais os seus maiores sonhos;
• Como é que expressa estes medos e também os seus sonhos e quem é, aos outros;
• Como é que os seus medos condicionam a sua relação com os outros;
• Como costuma expressar o que sente aos outros, e como é que o terá aprendido;
• Como é que a sua forma de se comportar pode influenciar a sua relação com os outros;
• Qual a imagem que tem de si e qual a que julga que os outros têm de si.

 

Os papéis: uma ou várias personagens?

 

Explorar as suas memórias permitiu-nos entender quais os papéis que Mário foi assumindo ao longo da sua vida, quais aqueles que não se deu espaço ou permissão para assumir, e qual a relação entre estes papéis e a sua história de vida. Mário foi entendendo que desde cedo assumiu um papel de protector e cuidador numa família em que a protecção era uma das palavras-chave. Funcionando como um clã e estando num ambiente e cultura que não era o seu, tornou-se natural assumir a responsabilidade aquando da vinda para Portugal. Sentindo a mãe frágil, o seu papel de força terá sido importante na manutenção da unidade familiar. Este papel passou a ser predominante em certa altura da sua vida, e pode estar relacionado com algumas dificuldades actuais: Mário tem dificuldade em aceitar o que não depende dele, ficando angustiado e frustrado perante a incapacidade de actuação sobre o que é exterior a si. Temos de acrescentar o facto de Mário vir de uma família de lutadores, com avós trabalhadores e de sucesso: “o meu avô nunca desistiu”. Como nós, as famílias têm uma identidade que vai passando entre gerações, e essa identidade permanece, por vezes fielmente, nos seus elementos. A compreensão destes factos foi permitindo a Mário, progressivamente, ir dirigindo o poder e controlo sobre si, e por sua vez ir aceitando o que não dependia dele.

 

Seguem-se algumas das questões que nos guiaram no trabalho sobre os papéis de Mário, nos vários contextos e na sua relação com os outros significativos:

 


• Qual é o risco de sair dos papéis habituais? O que ganho em manter-me nestes? O que perco?
• O que é que eu também sou que não estou a exprimir?
• Como é que as minhas relações actuais contribuem para manter estes papéis? O que acontecerá a estas relações se eu mudar o meu posicionamento?
• Qual é o risco de sair dos papéis habituais? O que ganho em manter-me nestes? O que perco?

 

O controlo e o medo de perder

 

Muitas vezes, no decorrer da terapia, Mário queixava-se da falta de controlo – sobre a casa, sobre a sua família – o que lhe causava ansiedade. Isto fazia-o lembrar-se do momento em que saiu de casa da sua mãe e decidiu que tinha de ter controlo sobre tudo. Nesta altura, Mário diz ter a consciência de que criou uma armadura, ficando em estado de alerta, atento a tudo o que o rodeava. Ao explorarmos esta armadura, notamos que actualmente ela também se revela: no seu comportamento, na forma como se exprime. Estas foram algumas das questões que nos permitiram explorar a questão do controlo:

 


• Como flexibilizar as suas defesas?
• Sobre o que pode ter controlo e sobre o que não é útil?
• Se não tivesse controlo, como seria o Mário?
• Como falaria e se relacionaria com os outros à sua volta se não falasse através da sua armadura?
• O que diria ao Mário que perde o controlo?

 

Mário sente-se fraco/frágil se não tiver a protecção do controlo. Ao descontruirmos esta crença sobre si, percebemos que a vulnerabilidade refere é apenas um sinal da sua sensibilidade e genuinidade, o que transforma um lado seu aparentemente frágil em algo que pode ser utilizado por si como uma força.A necessidade de controlo, associada a uma hiper-responsabilização pelos outros, estará também relacionada com uma falta de centração em si mesmo: no que precisava e no que o definia como pessoa. A sua definição, ao longo do tempo, pareceu estar muito associada à sua necessidade de pertença – defino-me através do outro. Logo, este problema poderá estar relacionado com o seu grande medo de perder: tenho medo de, se perder, me perder a mim.

Deste modo, o medo da perda foi sendo trabalhado através de duas vias simultâneas: por um lado, através de um melhor entendimento do próprio medo; por outro lado, através da exploração de si e de uma maior definição de quem é, o que lhe foi permitindo ir exercendo os seus limites de uma forma cada vez mais assertiva. Estas foram algumas das questões que me e lhe coloquei ao longo do tempo:

 


• Quem sou eu sem o outro?
• Quem sou eu se deixar de ter medo de perder?
• O que acontecerá às minhas relações se deixar de ter medo de perder?

 

A escolha em liberdade

 

O tema da responsabilidade e da escolha foi trabalhado durante grande parte do processo terapêutico, o que nos pareceu estar relacionado com o medo de perder. Mário foi-me apresentando alguns temas da sua vida com que não se encontrava em paz relativamente às escolhas que tinha feito. Tendo em conta alguns factos da sua vida, será natural que Mário tenha sentido que não teve poder sobre algumas das suas escolhas – se dependo de alguma forma do meu grupo de pertença para saber quem sou, é natural que não sinta como minhas as escolhas que faço. O trabalho relativamente a este tema consistiu:

 

No delineamento e afirmação pessoal além das características de pertença, o que permite a Mário, cada vez mais, ganhar uma maior definição de si mesmo e ir ganhando uma sensação de controle sobre a sua vida.

Na exploração de outros papéis que não o de agente sobre o exterior, o que lhe permitiu canalizar a sua exigência e necessidade de controlo para si mesmo, aumentando o seu poder pessoal.

O trabalho directo sobre algumas das memórias da sua vida com as quais não se sentia tranquilo, concretamente com as que envolviam escolhas da sua parte.

 

Relação com Vitória

 

O tema das escolhas relaciona-se, em grande parte, com a relação actual com Vitória. Mário revelou muitas vezes que gostava muito de Vitória, mas que não entendia bem quais tinham sido as suas motivações para ficar com ela. O casal teve um período de separação de seis meses, em que Mário afirmou que não sabia se queria esta relação. Após este período, optou por continuá-la, mas nunca entendeu completamente o que o levou a fazê-lo. Revelou que muitas vezes se sente preso a Vitória, interpretação que fez da sua história perante a sua dificuldade em separar-se. Mário não entendia por que é que, perante a sua constatação de que a sua mulher por vezes não correspondia exactamente ao que precisava, não conseguia separar-se dela.

Este período da sua vida foi trabalhado recorrendo a uma técnica narrativa: pedi a Mário que contasse a sua história aos seus netos, como se tivesse 70 anos. Este trabalho permitiu a Mário, por um lado, colocar-se em perspectiva, ao mesmo tempo que revisitou e reviveu esta memória. Ao falarmos sobre o que tinha escrito, entendemos que a sua sensação de estar preso se relacionava, não com o amor ou desamor em relação à mulher, mas sim com a sua própria dificuldade em assumir uma escolha. O facto de Mário ter decidido manter a relação com Vitória apesar de esta não corresponder ao que precisava fê-lo sentir-se culpado: “se aceito isto sinto-me culpado por não me dar a mim mesmo o que preciso”.

Outras questões de reflexão importantes no trabalho sobre este tema foram:

 


• Como seria se se sentisse em liberdade? O que faria?
• Acha que estaria actualmente com a sua mulher caso tivesse decidido com liberdade?
• O que é uma relação em liberdade?

 

Mário foi entendendo que a sensação de estar preso estava relacionada com o facto da sua escolha não ser em total liberdade, mas ter também como base, não só o amor que sente pela mulher, mas também o seu medo. Deste modo, a sua decisão foi sentida como uma inevitabilidade e não como algo que dependia dele mesmo – “não entendo o que esta mulher tem para eu ficar assim”.

A relação com Vitória era muito idealizada, havendo uma necessidade muito constante da parte de Mário que Vitória lhe demonstrasse o seu amor por ele. Esta idealização parecia estar baseada numa necessidade de Mário que não era satisfeita: preciso que o outro me demonstre que sou importante para ele; o facto de por vezes não querer estar comigo ou não me dar o que preciso significará que não me quer/não gosta de mim. Se é verdade que todos temos a necessidade de nos sentirmos importantes, amados e valorizados pelos nossos familiares, esta necessidade em excesso pode não nos permitir ver o outro com perspectiva e entender que as caixas do amor e dos limites da individualidade são distintos e não são incompatíveis. No início de um relacionamento amoroso – a fase da paixão – o estado de fusão é natural. Nesta fase, o “nós” pode ganhar preponderância perante o “eu” e o “tu”. Ao longo do tempo, o espaço individual vai passando a fazer parte, havendo um reajuste entre a afirmação pessoal de cada um dos elementos e o espaço comum, havendo momentos de fusão/paixão alternados de momentos mais individuais. Mário parece ter tido dificuldade na passagem de um estado de fusão permanente para um espaço alternado, o que parece estar associado exactamente à sua dificuldade no estabelecimento de limites entre si e os outros, e na confusão entre esta dificuldade e o amor: se me amas não existem limites entre nós.

Deste modo, foi feito um trabalho de responsabilização de Mário – por si, pelo que quer para a sua vida – a par de um trabalho de desidealização de Vitória e da relação amorosa.

À medida que Mário foi afirmando quem era, nos vários contextos da sua vida – familiar, profissional, social – foi-me revelando que a sua relação com Vitória ia mudando lentamente. Mário foi dizendo a Vitória o que sentia e gostava, e desta forma afirmando-se, sem no entanto exigir-lhe que correspondesse. Desta forma, Vitória foi ficando com espaço de escolha e liberdade perante Mário, deixando de sentir como imposição corresponder-lhe. Isto foi-se verificando em várias esferas da sua vida, inclusivamente na questão sexual: Mário deixou de encarar uma recusa de Vitória como um sinal de que não gostava dela, passando a entender que independentemente do amor que Vitória lhe tinha, existiam outros factores que faziam com que Vitória por vezes não quisesse estar com Mário intimamente. O respeito de Mário em relação aos limites de Vitória foi fazendo com que esta se aproximasse de livre vontade. A afirmação de Mário enquanto ser autónomo provavelmente terá feito com que Vitória o admirasse mais, aumentando-lhe o desejo. Estes dados vão ao encontro do que nos diz Ester Perel (2008) ao afirmar que a distância entre os dois elementos do casal permiti-lhes voltarem a observar-se com mistério e admiração, o que fará aumentar o desejo mútuo.

 

Os recursos

 

Ao longo das sessões, através da relação que estabelecemos, fui-me apercebendo que o Mário não era apenas o que o definia como membro daquela família. Pessoa apaixonada e genuína, Mário emociona-se com facilidade. É um homem sensível, curioso, e com uma grande abertura ao outro, abertura esta que lhe permitiu, apesar de se centrar mais em si, manter sempre a perspectiva e saber colocar-se no papel dos outros. Este exercício possibilitou-lhe uma afirmação de si de uma forma flexível, mantendo a sua excelente qualidade empática. Ao longo do tempo, fomos entendendo que largar o que não depende de nós também é uma forma de luta, e que não nos responsabilizarmos por outra pessoa não significa que não gostemos dela ou não lutemos por ela, mas sim que a respeitamos no que são as suas escolhas. A aceitação desta nossa condição humana – só temos real poder sobre nós – que era entendida como uma fragilidade e sinal de desistência, deu espaço de liberdade e actuação a Mário, para poder ir-se sentindo ele e também parte do seu grupo de pertença.

O trabalho de afirmação da sua individualidade foi sendo feito nas sessões, e no seu trabalho individual. As sessões de terapia constituem, por si só, num espaço individual. Neste espaço, existe aceitação total, o que permitirá a Mário ir entendendo que pode desempenhar outros papéis e ir entendendo quais lhe fazem sentido adoptar, ou seja, que imagem quer ter de si. Para mim enquanto terapeuta, a nossa descoberta conjunta deste Mário mais completo e mais consciente de si e das suas capacidades foi e é um dos principais objectivos da psicoterapia. Para tal acontecer, foi fundamental a exploração de alguns dos principais recursos de Mário, permitindo transformar fraquezas em forças, retirando características positivas de experiências menos boas. Neste processo foi muito importante explorar:

Outras questões de reflexão importantes no trabalho sobre este tema foram:

 


A grande capacidade reflexiva de Mário, o que nos possibilitou fazer associações entre os vários momentos da sua vida.

A sua grande capacidade para se colocar em causa: tratando-se de um processo de reconstrução e de mudança, a auto-crítica revela-se uma das características principais para um processo de mudança com sucesso.

A genuinidade de Mário, que sempre demonstrou uma grande capacidade para ligar-se às suas próprias emoções e de chegar a si apesar da “armadura” que ele próprio diz ter criado.

A sua forma apaixonada de viver, energia que depositou também no processo de mudança.

Os seus sucessos, nomeadamente profissionais, o que nos demonstrou como o que são fragilidades num campo podem ser recursos noutros. Por exemplo, a sua paixão, ambição, luta e exigência eram entendidos, na relação com Vitória, como factores de pressão na conjugalidade. No entanto, esta força e energia que Mário deposita em tudo o que faz será muito importante nas suas conquistas profissionais, e inclusivamente fonte de admiração por parte de Vitória.

A sua capacidade de se manter focado nos objectivos, inclusivamente nos objectivos terapêuticos.

A sua grande motivação para a mudança, um sinal de força e no fundo um sinal de amor próprio e pelos outros: Mário quer sentir-se bem e dar-se o melhor. Para também poder dar o melhor aos que o rodeiam.

 

 

A perspectiva de Mário sobre a terapia

 

Uma vez que Mário é o grande protagonista no seu processo de mudança, no final do sucesso perguntei-lhe quais tinham sido os momentos mais úteis e mais importantes ao longo destas 22 sessões. Mário refere:

 


O facto de ter pensado e criado alternativas na forma de estar.

A abertura progressiva que sentiu na sua motivação para a mudança

As sessões em que “reengavetámos os sentimentos”, discernindo entre amor e limites individuais.

A aprendizagem sobre as memórias e as escolhas e o seu impacto na vida presente, saber “encaixar as memórias nas vivências”: “foi um momento e teve um fim, não tenho de utilizar esse momento no presente”.

O processo de desidealização da mulher e da relação

A sessão em que conta a sua história aos seus netos.

 


 

  

 

Conclusões

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Neste artigo, expôs-se um caso de terapia individual com a duração de 22 sessões. Este caso espelha bem uma dificuldade que todos nós sentiremos, em maior ou menor medida, ao longo da nossa vida: a de estabelecer um equilíbrio saudável e flexível entre a nossa necessidade de pertença ao grupo (conjugal, familiar, social) e a nossa necessidade de sermos únicos e de afirmarmos enquanto indivíduos.

Neste processo, foram explorados aspectos individuais (os objectivos, os medos, os sonhos, a percepção individual de Mário) mas tendo sempre em conta as dinâmicas familiares e sociais envolventes: os papéis familiares e sociais mais patentes na história individual; as heranças familiares; a questão do amor e dos limites entre mim e o outro; a forma como o nosso meio social e familiar influencia a forma como gerimos o equilíbrio entre proximidade e afastamento, paixão e companheirismo, dependência e independência, força e fragilidade, entre outros.

Através da exposição deste caso, esperamos ter demonstrado como se pode intervir sistemicamente apenas com o indivíduo, tendo sempre em conta o micro e o macro contexto. Atender a estes contextos durante a intervenção permite-nos perspectivar o indivíduo como parte de um todo, e no entanto trabalhar sobre a sua afirmação individual. A atenção ao outro e às mudanças, ao longo do processo, que se verificam entre o indivíduo e o seu meio possibilitam uma adequação constante e uma flexibilização no processo de afirmação pessoal.


 


 

  

 

Referências Bibliográficas

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Ausloos, G. (1996).
A Competência das famílias: Tempo, caos e processo (J. Coelho, Trad.). Lisboa : Climepsi. (Obra original publicada em 1995).

Perel, E. (2008). Amor e desejo na relação conjugal. Lisboa: Editorial Presença.