Casal Zebra

haverá zebras com riscas de outras cores?
Estudo de Caso Terapia de Casal


Neste artigo é apresentado um caso de terapia de casal, com duração de quinze sessões, em que o casal apresentava uma dificuldade na articulação dos papéis de complementaridade e de simetria três anos após o nascimento do primeiro filho. Esta dificuldade afectava várias áreas da vida familiar, como a gestão das tarefas domésticas ou a vida íntima do casal. São expostos os principais processos desenvolvidos ao longo do tempo de terapia e a sua relação com as mudanças verificadas.

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O casal Ana e João

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Ana e João chegam à terapia por intermédio de uma amiga. O pedido geral é de insatisfação no casal, com a existência crescente de discussões. Os dois sentem que estão mais afastados do que no início do relacionamento, apesar de Ana ser, de início, o elemento mais queixoso.

Ana e João vivem juntos há nove anos e conhecem-se há dez. Os dois têm famílias de origem cabo-verdiana. Ana nasceu em Cabo-verde, onde viveu até aos seus 19 anos, altura em que veio para Portugal. João nasceu em Portugal.
Ana tem um irmão mais novo e dois meios-irmãos mais velhos. Com um pai muito exigente, refere ter sentido sempre pouca liberdade enquanto vivia em Cabo-verde. As relações familiares eram, segundo Ana, próximas mas tensas.

Desde pequena que sente vontade de aprender e de fazer “coisas novas”, desejo que lhe foi sendo coarctado pela responsabilidade incutida pela família. Hoje em dia mantém-se curiosa e exige da vida a liberdade de que sempre precisou. Com o 12º ano, trabalha como secretária numa instituição.

João é filho único. Refere ter tido sempre uma relação próxima e boa com ambos os pais, sem conflitos ou discussões. Percepciona-se como um homem muito sociável, que gosta de estar com os outros, “talvez por ser filho único e ter tido necessidade de estar com os outros” (João). A relação de grande proximidade com os pais mantém-se até hoje. É motorista e não desgosta do que faz. Gosta de jogar futebol, de sair e de estar com os amigos.

Ana e João conheceram-se através de amigos comuns. Ambos dizem terem-se apaixonado e terem vivido esse estado com bastante intensidade. Ao final de um ano foram viver juntos. A vivência em comum não foi fácil: Ana queixa-se do facto de João participar pouco nas tarefas domésticas e da intrusão da família de João, com falta de espaço para o casal. João queixa-se da grande exigência de Ana: “é muito exigente, com ela, com a vida e com os outros. Nunca está contente, anda sempre à procura de algo” (João). Os problemas intensificaram-se com o nascimento do filho, Gabriel, agora com três anos: aumentaram as tarefas familiares e aumentou a distância entre os dois, inclusivamente com uma distância em termos emocionais e sexuais.




  

 

Ana e João: o caso “zebra”

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À medida que Ana e João me iam contando a sua história fomos construindo, os três (Relvas, 1996b), algumas hipóteses sobre os factores que terão contribuído para a sua situação actual. Compreendê-lo não elimina os problemas, mas liberta-nos e dá-nos poder para fazer diferente.

Assim, em primeiro lugar, houve a considerar a fase de vida deste casal e a forma como foi vivida. O nascimento do primeiro filho constitui uma das fases importantes da história de vida de um casal (Relvas, 1996a). Ana e João referem que o nascimento de Gabriel veio alterar grandemente a sua vida: estabeleceu-se uma grande proximidade entre Ana e o filho, tendo havido um afastamento entre Ana e João, com falta de espaço para o casal. Hoje em dia, os dois parecem querer reaproximar-se, mas após três anos com esta nova dinâmica e a presença de um novo elemento, a aproximação apresenta naturalmente outros contornos, e esta nova forma ainda não se apresenta definida.

Ao nascer o filho, Ana assumiu um papel de maior liderança em casa, desempenhando mais tarefas domésticas e responsabilizando-se mais por algumas tarefas relacionadas com Gabriel. Concomitantemente, houve uma desresponsabilização de João por algumas tarefas. Nesta altura, a exigência de Ana relativamente a João começou a aumentar, estabelecendo-se alguma rigidez nestes papéis: Ana lidera e exige, João desresponsabiliza-se e vai ao encontro (ou não) das exigências de Ana. Quando assumem estes papéis, Ana diz que se sente “mãe de João”. E, como veremos, provavelmente a rigidez nestes papéis estará relacionada com as dificuldades do casal na sua intimidade.

Por outro lado, nem sempre o casal assume esta forma. Ana e João referem-me que muitas vezes entram em luta quando falam sobre alguns assuntos, tendo discussões “em que nenhum cede”. Neste caso, os papéis são de igualdade e dizemos que o casal entra em escalada simétrica (Watzlawick, Beavin & Jackson, 1972).

Parece então haver, neste casal, uma dificuldade na articulação entre papéis de complementaridade (quando Ana assume a liderança) e de simetria (quando lutam).

Neste momento, tornou-se importante explorar a história de vida de Ana, no sentido de compreender esta sua exigência. Como frisado anteriormente, Ana vê a sua infância e adolescência como algo castradoras do seu crescimento individual: “nunca pude fazer o que queria. Nunca me senti em liberdade”.

Ana é uma mulher bonita, atraente, cheia de vida. Refere várias vezes o seu gosto por crescer, mudar, aprender. Numa altura da vida em que toda a sua energia é canalizada ou para o seu trabalho, ou para a sua família, parece haver pouco espaço para si. Esta sua exigência com a vida é naturalmente canalizada para a sua família, concretamente para João: “gostava que ele gostasse mais de sair, que tivesse mais iniciativa, que quisesse fazer coisas, ir a eventos culturais”. Ana irrita-se com a passividade do marido, sem no entanto entender que a sua exigência contribui para ela: “eu não posso ter iniciativa, não tenho espaço. E quando tenho, muitas vezes entramos em luta, porque temos opiniões diferentes” (João). E aqui compreendemos um pouco como a exigência de Ana, relacionada com a sua história de vida, contribui, neste momento, para a dificuldade na articulação entre os papéis de complementaridade rígida e papéis de simetria.

João é filho único, numa família em que o núcleo familiar tem relações muito próximas mas pouco conflituosas. João assume-se como uma pessoa calma, gosta de estabilidade. Sempre tentou afirmar-se, na sua família, de uma forma conciliadora, sem que isso gerasse conflito. Ainda hoje existe uma grande proximidade por parte da sua mãe e do seu pai neste núcleo familiar, proximidade que Ana considera exagerada. Apesar de compreender que esta proximidade possa provocar dificuldades neste casal, João tenta conciliar e mostra algumas dificuldades em impor limites à sua família de origem. Esta postura conciliadora pode também contribuir, no momento actual, para a sua dificuldade em assumir, por vezes, um papel de líder (por exemplo tomando a iniciativa), dado que a auto-afirmação pode estar associada, para si, a conflitos (o que acaba por verificar-se neste casal).

É de frisar, no entanto, que a exigência de Ana também tem uma função importante e positiva: é fonte de mudança, de transformação. O seu inconformismo também lhes permitiu querer mudar e procurar ajuda. Do mesmo modo, a postura calma e conciliadora de João constitui uma das suas qualidades e dá-lhe uma sensibilidade especial no entendimento deste casal e de Ana, o que foi essencial na condução do processo.

Assim, o processo de mudança consistiu em grande parte em desconstruir as formas rígidas que a relação assumia, entendendo de que forma a rigidez nos papéis que assumiam um em relação ao outro afectava a sua vivência e ajudava a manter os problemas, e fomentando a flexibilidade no casal.

Em relação à complementaridade rígida, tornou-se necessário reafirmar a individualidade de João, no sentido de promover uma maior igualdade entre este e Ana. Este processo de dar voz a João foi também extremamente importante, como veremos, na reconstrução da intimidade do casal e no aumento de desejo por parte de Ana. Neste caso, a questão principal (e a dificuldade que senti durante o processo) era a de fomentar a afirmação de João sem que isso provocasse uma escalada simétrica no casal.

As posições de simetria pareciam estar associadas à necessidade de reafirmação da individualidade de cada um, e esta necessidade entende-se bem, dada a fase de vida por que tinham acabado de passar: quando nasce um bebé tudo parece passar a centrar-se na criança e nas suas necessidades, e as funções ou papéis dos adultos passam a ser a de, quase exclusivamente, pais. Mais tarde, com o crescente ganho de autonomia do filho, é natural que ressurja a necessidade de reafirmação pessoal: quem sou eu além do meu papel de mãe? Quem sou eu além do meu papel de pai?




 

  

 

Desenvolvimento do PROCESSO TERAPÊUTICO

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O processo terapêutico durou quinze sessões, divididas em duas fases. Foram realizadas dez sessões iniciais, com um espaçamento quinzenal entre elas, findas as quais o casal fez uma interrupção do processo (houve uma interrupção para férias que se prolongou). Ao final de três meses Ana e João voltaram à terapia, tendo sido realizadas mais cinco sessões. As últimas duas sessões tiveram um espaçamento mensal.

 

Problemas comuns, objectivos comuns

 

Nas primeiras sessões recolhi, de forma breve, a história do casal, e foram explorados os vários problemas do ponto de vista de cada um. Esta fase, que num primeiro olhar parece ser apenas de avaliação constitui, neste e noutros casos, um momento crucial para a terapia. A diferença na percepção de cada um dos elementos sobre o que são os seus problemas surge muitas vezes como um primeiro conflito no processo terapêutico, e a sua resolução, ou o encontro na diferença, constitui a primeira solução encontrada a três: o casal vê como, sem haver uma discussão, é possível chegar a um acordo.

A partir da exploração dos problemas que os trazem à terapia, podemos então chegar a objectivos comuns. Colocar a questão em termos de objectivos futuros, positivos, a conquistar, e não como simples eliminação dos problemas permite já de si alterar o discurso e alterar a percepção do casal sobre si. A questão “o que quero desta relação?” é muito diferente desta outra: “o que não quero desta relação?”. Ainda importante, é a percepção de que o outro também tem queixas, também tem limites e também tem uma ideia do que quer para a sua relação. Esta constatação é importante para o respeito mútuo e para o entendimento do outro como um ser autónomo e diferente de nós.

Neste casal, estes foram os objectivos iniciais estabelecidos por cada um dos elementos:

João: mais atenção por parte de Ana; melhorar a vida sexual do casal; mais espaço para o casal; menos discussões.

Ana: mais ajuda de João nas tarefas domésticas; saírem mais os dois; ter um ambiente mais calmo em casa; verem menos televisão; sentir que a casa é mais o espaço desta família; menos discussões.

Foi observado como, apesar de serem colocados de forma diferente, os objectivos de cada um deles vão no mesmo sentido, o que transforma numa “luta a dois”.

 

 

Os recursos

 

O processo de exploração dos recursos é, do meu ponto de vista, tão ou mais importante do que explorar os problemas. Estas foram as questões que fui fazendo a este casal, ao longo do tempo:

 


• O que gosta mais no seu parceiro?
• Quais são as qualidades deste casal?
• Como conseguiram ultrapassar os maus momentos?
• Como acham que irão ultrapassar este?
• O que vos aproximou inicialmente?
• Quais as vossas principais conquistas?

 

Neste caso, explorar os recursos foi particularmente importante para reforçar a identidade do casal, que se tornou fundamental visto estarem a passar por uma fase em que existia pouco espaço para o casal. Além disso, a resposta a estas questões é também fundamental na criação de “espaço para a mudança”: a valorização do outro em relação a mim e a “nós” é essencial para que eu sinta que posso mudar sem que isso seja sentido como uma imposição. O que eu mudo são comportamentos, e não quem eu sou.

Nos processos em que existem muitas escaladas simétricas, que se concretizam sob a forma de discussões, este processo de validação é ainda mais importante, dado que a própria escalada parece ser uma luta pela afirmação individual (“ou tu, ou eu”). Logo, se eu entendo a minha mudança como uma imposição do outro – ou mudas ou não gosto de ti – ao mudar eu sinto que estou a comprovar que não era amado como era. Torna-se então fundamental mostrar que a necessidade de mudança não é um ataque pessoal ao outro.

Neste processo de validação, foi realizado muito trabalho de exploração um do outro. Para isso, cada um deles falou sobre si e sobre a sua história, havendo espaço para fazer perguntas. Além disso, foi realizado trabalho de troca de papéis (por exemplo, através da entrevista ao outro interiorizado) (Tomm, Hoyt & Madigan, 1998), que permitiu a Ana e a João colocarem-se do ponto de vista um do outro e também observarem e constatarem em que é que o outro os compreende.

 

 

Trabalho sobre os problemas

 

Como vimos, o problema das discussões parece estar associado a um processo de escalada simétrica, que por sua vez poderá estar relacionado com a necessidade, neste momento das suas vidas, de reafirmação pessoal de parte a parte. Deste modo, o trabalho sobre este problema consistiu na tentativa de reafirmação pessoal de Ana e de João sem que isso provocasse discussões. As perguntas que me coloquei e que lhes fui colocando, a propósito deste tema, foram:

 

Como podem os dois afirmar-se sem provocar escalada? O que os está a impedir de o fazer?

Alguém tem que ceder? O que significa ceder?

 

O que se passa, neste e em tantos outros casos, é que cada um deles sente que se se impõe gera-se luta, mas se não se impõe perde a admiração do outro, colocando-se o elemento que cede numa posição de inferioridade. O pedido, de parte a parte, parece ser paradoxal: se não te impões não te admiro; se te impões lutamos.

Estão então presentes duas necessidades fundamentais: a necessidade de auto-afirmação e a necessidade de admiração por parte do outro. Deste modo, o trabalho terapêutico consistiu em dar espaço a ambos para exporem quem são e as suas opiniões, sendo realizado concomitantemente um trabalho de validação um do outro. O objectivo terapêutico era que ambos entendessem que podiam afirmar-se, e que a afirmação do outro não consistia necessariamente num ataque contra si.

Como vimos, para evitar discussões, este casal assumia, noutros momentos, uma forma de complementaridade em que Ana era sempre o elemento líder: era ela quem exigia determinados comportamentos de João. No entanto, as suas principais queixas relativamente a João eram de falta de iniciativa, de falta de “querer”. É interessante notar como também este é um pedido contraditório: eu exijo-te que tu te imponhas.

No sentido de trabalhar estes papéis, foi importante compreender as histórias de vida de Ana e de João e de que forma estas poderão estar relacionadas com o papel de exigência por parte de Ana (ou de “mãe”) e o papel de passividade por parte de João (ver supra).

Tendo em conta a história de vida de Ana e a sua exigência, um dos aspectos importantes do processo foi a promoção de um espaço individual de crescimento de Ana. Este espaço permite que não haja uma pressão tão grande sobre este casal, o que por sua vez nos daria mais espaço para dar pequenos passos no casal e valorizá-los.

Tendo em conta a história de vida de João, foi importante promover a sua auto-expressão (inclusivamente em sessão) havendo uma boa recepção por parte de Ana. Desta forma, João pode constatar que é possível afirmar-se e estabelecer limites sem que isso provocasse conflito no casal.

O tema da intimidade, colocado por João, foi abordado, de uma forma directa, apenas nas últimas sessões. No momento actual Ana tinha falta de desejo em relação a João, o que não acontecia no início do seu relacionamento. Nenhum deles conseguia explicar o que tinha acontecido, havendo uma postura de conformação por parte de Ana. Ao explorarmos o que acontecia, pareceu-nos que este problema poderia estar relacionado com a postura complementar rígida que este casal assumia, com Ana com um papel de “mãe” de João:

 

A ordena a J

J coloca-se em posição de ser ordenado

J não tem espaço para tomar iniciativa nas coisas de casa e nas saídas e decisões familiares

Quando J se impõe gera escalada simétrica

 

Este problema foi melhorado como consequência do aumento do espaço individual (maior admiração de Ana em relação a João) e com o aumento da consciência de que o outro não é nosso nem é completamente previsível, conhecido e seguro. Muitas vezes a segurança que se cria ao longo de muitos anos de crescimento no casal pode fazer diminuir o desejo – o outro é previsível, conhecido, e não tem de ser conquistado (Perel, 2008). Deste modo, foi essencial a promoção de espaços individuais, o reconhecimento das qualidades de cada um e, sobretudo, a constatação do processo de responsabilização de João ao longo do tempo. Ana afirmava, no final da terapia, que via João como “mais homem”, mais fonte da sua admiração.

 

Reconhecimento da responsabilidade de cada um pelos problemas e pela mudança

 

Este foi um dos pontos essenciais no trabalho com este casal, não apenas porque a responsabilização pela mudança é fundamental para que esta aconteça, mas também porque este foi um dos temas que trouxe este casal à terapia: a desresponsabilização de João pelos problemas no casal espelha a sua passividade noutros temas do casal, e coloca-o numa posição de maior fragilidade

Inicialmente, a postura do casal era de atribuição recíproca dos problemas: Ana queixava-se da passividade de João; João queixava-se da exigência de Ana. Começámos por explorar o papel da história de Ana na sua exigência actual, e isso permitiu-nos pensar que outra forma poderia Ana “estar” neste casal, o que poderia esta fazer sem depender da mudança de João.

Mais difícil foi o trabalho de responsabilização de João e de descoberta dos factores, que não a exigência de Ana, que contribuiriam para que este assumisse um papel mais passivo. No entanto, a compreensão e aceitação de João da sua contribuição para os problemas foram essenciais neste casal: Ana constatou que não era ela a fonte dos problemas e que João compreendia isso. Ao ver que João se responsabilizava, passou a olhar para ele também com outros olhos: “libertou-me, e vi-o como mais crescido, mais homem”. Esta diferença na percepção de Ana sobre o marido é fundamental para que haja uma maior igualdade nos papéis.

 

Reconhecimento e reforço do esforço do outro e de pequenas melhorias

 

Ao longo do tempo de terapia, foi feito um trabalho de reconhecimento do esforço de mudança de cada um e de reforço das pequenas melhorias na relação. Como vimos, esta validação de parte a parte permite uma mudança qualitativa a médio prazo: eu permito-me mudar porque sei que o outro valoriza essa mudança mas não ma ordena.

 

 

Reconstrução de identidade do casal

 

A par da valorização das mudanças efectuadas, tornou-se importante a reconstrução da identidade deste casal, não só porque num processo de mudança é fundamental que os elementos sintam que existe algo de fundamental que se mantém e lhes dá segurança (mudo continuando o mesmo), mas também porque este casal se encontrava numa fase da vida em que o tempo e espaço para o casal era pouco considerado.

Para realizar este trabalho, foram utilizadas várias técnicas. Especialmente importantes para mim, enquanto terapeuta, foram as duas sessões em que trabalhámos a fundo este tema através do símbolo do casal. Foi pedido aos dois que encontrassem um símbolo para o casal (um objecto, um animal, ou qualquer outro). Os dois concordaram que seria uma zebra: “tem riscas pretas e brancas, que reflectem as nossas diferenças e também os altos e baixos”. Foi então realizada uma entrevista à zebra, com a inclusão das seguintes perguntas:

 


Como é a sua história?

Quais foram as melhores fases da sua vida? E as piores?

Como conseguiu ultrapassar as dificuldades? Em que é que eles ajudaram? Em que é que eles a dificultaram?

Como vê o seu futuro? Quais as dificuldades que antecipa? Quais os sucessos que antecipa?

Por vezes as suas riscas são cinzentas? Se pudesse dar outras cores às suas riscas, que cores gostaria de ter?

 

Além disso, foram ainda utilizadas técnicas como as esculturas (realização de esculturas do casal no passado, presente e futuro) e a realização de gráficos com as histórias de vida, que permitem explorar as diferenças na percepção de cada um e encontrar pontos de vista comuns através de materiais não verbais.



 

 
 

Dificuldades terapêuticas

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As principais dificuldades que senti neste caso prendem-se com a responsabilização de João pelos problemas. As primeiras sessões foram mais centradas em Ana, que era o elemento mais queixoso desta relação. Houve uma tentativa, da minha parte, de reconceptualização da queixa de Ana. Para isso, foi explorada a história de Ana e de que forma esta poderia contribuir para o que sentia actualmente relativamente a João e a esta relação. No entanto, este foco em Ana trouxe, inicialmente, um problema acrescido, porque parece ter reforçado o sistema anterior: houve o reforço da percepção de João de que o problema era da exigência de Ana e não seu, promovendo a sua desresponsabilização pelo processo e reforçando o papel de “mãe” por parte de Ana. Esta dificuldade foi sentida e explicitada por Ana, o que me fez mudar de rumo no sentido de responsabilizar João. No entanto, a questão seguinte foi:

- Como responsabilizar João pelo processo terapêutico sem que isso desresponsabilize Ana?

Para ultrapassar esta dificuldade, foram utilizados dois mecanismos essenciais em sessão: dar voz a João em sessão e reforçar João, validá-lo nas suas intervenções. O facto de João se sentir validado, por mim e por Ana, permitiu-lhe entender que podia afirmar-se, dar a sua opinião, sem que isso provocasse conflitos. Ao longo do tempo, João foi-se tornando um elemento muito interventivo em sessão, com uma grande capacidade de entendimento do que se passava e com considerações que foram fundamentais na condução do processo de mudança. A validação de João ter-lhe-á permitido a partilha da responsabilidade pelos problemas.



 

  

 

Conclusões

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Os problemas que este casal trouxe à terapia não são novos e são muito comuns em terapia: discussões, dificuldade na gestão das tarefas, falta de atenção de uns elementos em relação aos outros, problemas na intimidade, com redução do desejo por parte de um dos elementos.

Estas dificuldades surgem muitas vezes em alturas de crise, ou períodos de mudança na família. Neste caso, vimos como o nascimento de Gabriel veio alterar a dinâmica desta família. Três anos passados desde o nascimento do primeiro filho, Ana e João voltam a centrar a sua atenção no casal e em mesmos. Neste momento, parece haver, por um lado, uma necessidade de afirmação individual por parte de cada um dos elementos do casal, e por outro uma reafirmação da identidade do casal, e estas duas necessidades parecem, por vezes, ser incompatíveis. Estes dados vão ao encontro do que nos propõe G. Ausloos, que define o sintoma como “o resultado de uma incompatibilidade entre as finalidades do indivíduo e as finalidades familiares no momento de emergência do sintoma (Ausloos, 1981, citado por Ausloos, 1996, p.130).

O trabalho realizado foi, assim, no sentido de promover a individualidade de Ana e de João e simultaneamente flexibilizar os papéis dos vários elementos. Isto foi feito através da exploração, promoção e validação de Ana e de João um pelo outro e simultaneamente da exploração e reforço da identidade do casal. Este trabalho permite ao sistema familiar ir mudando mas mantendo a sua identidade. Salienta-se a necessidade de haver uma mudança conjunta dos vários elementos, no sentido de adaptação dos novos papéis individuais na história conjunta, das novas identidades individuais nas histórias individuais. Para que não houvesse conflito no trabalho de afirmação individual, foi feito um trabalho extenso de exploração dos recursos individuais e do casal, e das características únicas neste casal, que permitiu a partilha da responsabilidade de ambos os membros pelos problemas e pelas soluções. A atribuição partilhada da responsabilidade, foi, na minha percepção de terapeuta, o que permitiu todas as mudanças efectuadas.


 


 

  

 

Referências Bibliográficas

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Ausloos, G. (1996).
A Competência das famílias: Tempo, caos e processo (J. Coelho, Trad.). Lisboa : Climepsi. (Obra original publicada em 1995).

Perel, E. (2008). Amor e desejo na relação conjugal. Lisboa: Editorial Presença.

Relvas, A. (1996). O ciclo vital da família, perspectiva sistémica. Porto: Edições Afrontamento

Relvas, A. (1996). A co-construção da hipótese sistémica em terapia familiar.Análise Psicológica, 4 (XIV). 563-579.

Tomm K, Hoyt M, Madigan S (1998). Honoring our internalized others and the ethics of caring: A conversation with Karl Tomm.The Handbook of Constructive Therapies,. Edited by Michael Hoyt, p198-218

Watzlawick, P., Beavin, J.H. & Jackson, D. (1972).Pragmática da Comunicação Humana – um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interacção.. Álvaro Cabral, trad.). São Paulo : Editora Cultrix (Obra original publicada em 1967).